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sexta-feira, março 04, 2011

Conto do 25 de Abril

FICÇÃO:


Rodrigo descia a rua pela manhã, e pareceu-lhe pairar no ar algo diferente que ele não sabia o que era.
Passou próximo de duas mulheres que falavam em tom baixo e recatado. Rodrigo nada decifrou. Continuou o seu caminho que o iria conduzir a oficina onde trabalhava. Que havia qualquer coisa havia, até as pessoas aquela hora na rua pareciam serem menos.

- Bom dia Sr Américo.

- Bom dia Rodrigo

- Então não sabes nada?

- Eu não, respondeu Rodrigo na sua ingenuidade de rapaz de dezoito anos.

- Parece haver uma revolução.

- Uma revolução?... Uma revolução para quê?

- Ora essa, respondeu com afabilidade Américo.

- Espera que estão a actualizar as notícias.

- "Recomenda-se a todas as pessoas para que se mantenham em casa. O Presidente do Conselho e o Presidente da República, preparam-se para renunciar ao cargo, evitando assim que haja um vazio de poder"... e as notícias continuavam...

Realmente Rodrigo não entendia muito bem aquela linguagem, nem o que se estava a passar.
Américo, homem de cinquenta anos, tinha agora esperança que aquela ditadura pudesse finalmente acabar. Então, encarando Rodrigo, tomando-o como o filho que aquela guerra no ultramar lhe roubara, falou de mansinho.
- É assim Rodrigo, o nosso País vive numa ditadura, isto e´; todos temos que pensar da mesma forma, ou no mínimo parecer pensar. Agora se isto acabar todos seremos mais felizes.
Era a primeira vez que Rodrigo ouvia falar deste modo o patrão. Tanto azedume e tristeza naquelas palavras.
A guerra!..., aquela guerra, Américo falava para ele próprio. Tudo lhe roubara. Primeiro o filho, que era o único. Depois a mulher que não resistiu a tanto sofrimento. Ele prometeu a ele próprio que vingaria tudo o que lhe tinham tirado. Tentou, manifestando-se publicamente, mas o que obteve foi apenas passar umas noites no calabouço da PIDE (Policia Internacional de Defesa do Estado) para interrogações. Valera-lhe na altura um homem alto, bem vestido, que nunca conhecera, que o mandou libertar. Hoje seria um preso político ou quem sabe, não seria nada…
Os anos alteram-lhe a força, mantendo apenas viva a revolta. Desta vez acabaria o tormento, iria saborear sozinho, mas devagar, aquela paz.

- Rodrigo? chamou Américo. Agora que isto está mais estabilizado, vou ausentar-me por uns tempos.

- Onde vai Sr Américo?

- Vou a África, Angola, encontrar-me com o meu filho.

Nestes dois anos pós revolução Rodrigo tinha aprendido muitíssimo. Voltara a escola, e não foi difícil perceber o sentimento do patrão. Nada disse, apenas que fosse descansado que ele trataria de tudo o melhor que soubesse.
A Américo nada restava, apenas aquela dor funda e intensa de ter ficado só, com o filho morto naquela guerra.
Para morrer em paz tinha que ir ao local onde o filho estivera pela última vez. Uma espécie de despedida. Para ele era importante, talvez assim pudesse descansar. Aquela urna que lhe entregaram e não pudera abrir para se certificar que ia enterrar o filho, não sossegara este pai.
Dois meses volvidos, Rodrigo recebe uma carta do patrão informando-o, de que não sabia quando regressaria.

Não houve mais correspondência. Américo não conseguiu separar-se daqueles lugares, ali sentia-se mais próximo do filho.

Válter Deusdado

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